Histórias, pensamentos e apontamentos para contar, partilhar e recontar. Episódios que aconteceram (ou talvez não), foram inventados, têm piada ou puxam à lágrima ou, simplesmente, apetece contar.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
Um jantar
A noite estava escura como breu, na estrada que levava a Cacilhas.
O ponto de encontro para o jantar dos 50 anos de uma amiga era num restaurante no Beco do Ginjal, mesmo junto ao Tejo. Colocou a morada no GPS que, em tom decidido, indicava o caminho.
Chegando a Cacilhas, a voz do GPS manda virar à esquerda. Sem suspeitar de nada, ela segue o conselho. Era um cais apertado, mas por onde o carro circulava sem problema, vendo até algumas pessoas e alguns carros estacionados à beira-rio.
Confiante no seu GPS, ela seguia. E a voz feminina do GPS informa que o destino é a 800 metros.
De repente, o cais estreita e as luzes somem-se. A iluminação provém toda da outra margem do Tejo. Vê o último carro estacionado e continua o caminho. Afinal, seguia as indicações do aparelho. Até que surge um poste de iluminação que desenha os contornos de dois vultos que seguem na sua direcção. Os caminhantes aproximam-se e ela vislumbra dois marmanjos com aparência rebelde e que se metem à frente do carro a fazer gestos assustadores, provocando a sensação de terror disfarçada por um olhar que finge não ver ninguém, que não denuncia medo.
O caminho estreita ainda mais e a luz torna a desaparecer. À esquerda um armazém de portas escancaradas, à direita umas escadas para o rio e um pouco à frente uma velha estrutura industrial, sinal dos tempos em que no Cais do Ginjal se trabalhava activamente. E o carro atinge um ponto sem retorno. Ao fundo o restaurante, mas o caminho era impossível.
Ainda aterrorizada com os marmanjos, pensa em deixar o carro ali mesmo, mas ocorre-lhe um pensamento que o impede. “Podem ter que passar ali os bombeiros ou uma ambulância”. O pânico toma-lhe a perna esquerda e pensa em ligar ao marido para vir tirá-la dali, mas a coragem vislumbra-lhe uma solução. Percorrer o mesmo caminho em marcha atrás. A batida cardíaca provavelmente atingia recordes históricos.
Mete a mudança e começa o caminho. De um lado, as paredes como que vêm contra o carro, e do outro o rio também se aproxima. O rio ali tão perto. “E se o carro cai? Já imagino as manchetes dos tablóides: Carro cai ao Tejo em Cacilhas”. Queria ir para casa mas, afinal, eram os 50 anos de uma amiga. Passa pelo armazém de portas escancaradas, continua o caminho para trás, num longo trajecto de 300 ou 400 metros, até que chega finalmente a um local em que pode estacionar e sair da segurança silenciosa do carro.
Ainda pensava nos marmanjos que de certeza tinham visto o GPS e iam roubá-la. Pega no GPS e esconde-o.
Ao sair do carro é rodeada pelos sons, ocultos quando estava no carro.
O rio bate na estrutura de ferro, que range, provocando uma sinfonia de sons digna de um filme de terror. Começa a correr, passa pelo armazém de portas escancaradas, aterrorizada e com receio que saltasse dali alguém. O sítio parecia ser apropriado aos mais sinistros crimes. Nem sequer pensava que estava 25 minutos atrasada.
Continua a correr e finalmente chega ao restaurante. Ao fundo, vê a mesa comprida vazia. Ainda ninguém tinha chegado.
Vai ao balcão e pede uma água. Só queria sair dali, ir para o sossego desassossegado da cidade, cheia de luzes e de portas fechadas.
Ouvem-se vozes femininas a rir, animadas. Eram elas a chegar.
O pânico desvanecia-se.
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Frustração informática
Fiz um copy e perdi um paste...
Escrevi um texto enorme e fiz copy. Entretanto, atendi um telefonema, fiz outro copy e perdi o primeiro paste.
Que frustração.
Escrevi um texto enorme e fiz copy. Entretanto, atendi um telefonema, fiz outro copy e perdi o primeiro paste.
Que frustração.
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
Uma profissão bonita
Taxista.
Conta um profissional da área que esta é uma profissão bonita. "Nunca se sabe o que vai sair a seguir. Pode ser uma daquelas pessoas que não resposta e ficamos a falar pr'ós botões ou então pessoas com quem é agradável conversar. E a gente sente que está a levar a pessoa onde ela quer e também a melhorar um bocadinho o dia da pessoa."
O Senhor Taxista ostenta orgulhosamente o cartão da profissão. "Já fui muitas coisas: pastor, guardador de pássaros, carpinteiro, pintor, e sempre gostei do meu trabalho. Hoje sou taxista. É uma bonita profissão".
Conta um profissional da área que esta é uma profissão bonita. "Nunca se sabe o que vai sair a seguir. Pode ser uma daquelas pessoas que não resposta e ficamos a falar pr'ós botões ou então pessoas com quem é agradável conversar. E a gente sente que está a levar a pessoa onde ela quer e também a melhorar um bocadinho o dia da pessoa."
O Senhor Taxista ostenta orgulhosamente o cartão da profissão. "Já fui muitas coisas: pastor, guardador de pássaros, carpinteiro, pintor, e sempre gostei do meu trabalho. Hoje sou taxista. É uma bonita profissão".
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
O ridículo
A importância das coisas tende a ser encarada conforme a disposição. Quando num dia cinzento, a menor coisinha pode tomar proporções gigantescas. E, na realidade, é uma situação tão insignificante que nem sequer deveria ser pensada.
Por outro lado, as pessoas tendem a revelar a sua pequenez nas mais sórdidas situações.
Procuro não reagir a estas situações e superá-las sem lhes dar importância. Na realidade, são insignificantes.
Afinal, sobre o que é isto?
Insignificâncias, afinal!
Para quê dar-me ao trabalho?!?
Por outro lado, as pessoas tendem a revelar a sua pequenez nas mais sórdidas situações.
Procuro não reagir a estas situações e superá-las sem lhes dar importância. Na realidade, são insignificantes.
Afinal, sobre o que é isto?
Insignificâncias, afinal!
Para quê dar-me ao trabalho?!?
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
A importância do contexto
Recebeu uma SMS da mãe, com o texto "Bom dia. Ludopatia é a doença da dependência do jogo. Bjs".
Olhou bem para o telefone, rebuscou na sua memória o contexto da mensagem, mas nada lhe ocorria. Já preocupada, por não compreender o alcance da SMS, responde com nova mensagem temperada com uma sensação esquisita.
O telefone não tarda a tocar para desfazer o equívoco. Ludopatia era o tema de uma reportagem e a mensagem servia apenas para partilhar o conhecimento adquirido, por entre gargalhadas ruidosas, provocadas pela mensagem da filha: "Bom dia... mas eu não jogo, mãe..."
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
Se eu governasse
Considero-me uma pessoa muito prática para quem desenvolvimento está associado à comodidade pessoal.
Por outro lado só valorizamos o que já experimentámos, não é?
Lembrava-me vagamente - tipo pré-historia - de usar botijas de gás em casa para os banhos e cozinha.Depois veio o gás canalizado e o passado tornou-se tão remoto que não me passou pela cabeça voltar a viver de outra forma. Entretanto passei a viver noutra terra e lá voltei às botijas... porque o gás canalizado está confinado a algumas partes do país das quais não faz parte a zona onde actualmente habito. Assim, vivo apavorada com a possibilidade de estar a tomar banho, o gás acabar e eu ficar para ali a tremer de frio, acabando num banho de água gelada. Hão-de admitir que é extremamente desagradável!
Se eu governasse mandava canalizar o gás pelo país todo. Haja coerência - desenvolvimento é a comodidade da população,ou não é? Tenho reflectido muito nas vantagens ou desinteresse do TGV... Vai aumentar a minha comodidade? E o Aeroporto?
Eu até gosto tanto de andar de avião e desembarcar na Portela e nem penso alterar os meus hábitos.
Por outro lado só valorizamos o que já experimentámos, não é?
Lembrava-me vagamente - tipo pré-historia - de usar botijas de gás em casa para os banhos e cozinha.Depois veio o gás canalizado e o passado tornou-se tão remoto que não me passou pela cabeça voltar a viver de outra forma. Entretanto passei a viver noutra terra e lá voltei às botijas... porque o gás canalizado está confinado a algumas partes do país das quais não faz parte a zona onde actualmente habito. Assim, vivo apavorada com a possibilidade de estar a tomar banho, o gás acabar e eu ficar para ali a tremer de frio, acabando num banho de água gelada. Hão-de admitir que é extremamente desagradável!
Se eu governasse mandava canalizar o gás pelo país todo. Haja coerência - desenvolvimento é a comodidade da população,ou não é? Tenho reflectido muito nas vantagens ou desinteresse do TGV... Vai aumentar a minha comodidade? E o Aeroporto?
Eu até gosto tanto de andar de avião e desembarcar na Portela e nem penso alterar os meus hábitos.
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Torradinha da Avó
Ela acordou, foi ter com a mãe, abraçando-a e beijando-a, disse-lhe: "Sou o teu docinho". A mãe, embevecida, disse "Pois és". A menina continuou "E sou a torradinha da avó"...
Qual é a avó que não sente vontade de ficar encharcadinha de manteiga?
Qual é a avó que não sente vontade de ficar encharcadinha de manteiga?
terça-feira, 28 de outubro de 2008
Vento
As janelas ribombam ao ritmo do vento que chegou à cidade. Os mais desatentos continuam a sair de chinelinho e t-shirt. Os cabelos esvoaçam ao vento, a cara gela à sua passagem.
São os sinais do Outono, que teima em querer ficar adormecido.
Passando pelos carrinhos de vendedores de castanhas, sinto indiferença quando, todos os anos procuro a fumaça que esbanja aquele delicioso cheiro outonal. Mas este ano é difícil dar as boas vindas aos vendedores de castanhas.
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
Sem título
De repente, tudo escureceu. Mas, depois da tempestade, vem a bonança. E a bonança é calma, mas intensa de sensações.
E a luz voltou.
E a luz voltou.
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
Eu e os transportes públicos em Lisboa
Vivi 22 anos em Lisboa e fui utilizadora frequente dos transportes públicos, ao ponto de ter tido sempre o passe. Há 4 anos, mudei-me para o Algarve e apesar de continuar a ir a Lisboa, faço-o sempre de carro, portanto não me fui apercebendo das alterações nos transportes públicos. Em Julho deste ano, fui ao estomatologista que é no Campo Pequeno e fiquei em casa da minha filha no Parque das Nações, portanto achei que seria muito pratico ir de Metro. Comprei o bilhete de ida e volta – que achei caríssimo – 1,95€. Teria que ir do Oriente à Alameda na linha vermelha, mudar para a verde até ao Campo Grande e aí apanhar a amarela até ao Campo Pequeno. Como achava que da Alameda ao Campo Pequeno a distancia era mínima, decidi sair na Alameda e percorrer o resto a pé… esqueci-me foi da subida íngreme de 1 km, mas lá cheguei. Claro que no regresso usei as linhas todas que me eram de direito – amarela, verde e vermelha. No fim do percurso deitei o bilhete fora como sempre fizera até há 4 anos, quando me atrasava a comprar o passe e tinha que usar um das máquinas.
Dia 8 de Setembro tinha que ir ao Hospital da Força Aérea no Lumiar a uma consulta.
Fui na véspera de comboio para Lisboa e fiquei em casa de uma amiga que vive nas Olaias. Informei-me muito bem dos transportes todos que tinha de usar:
Metro – Olaias – Alameda – Campo Grande;
Autocarro – 78
Na estação de Metro das Olaias dirijo-me às maquinas para comprar o bilhete de ida e volta, vem uma funcionaria da CP perguntar-me se preciso de ajuda, agradeço e ela pergunta-me pelo cartão para carregar. Não tenho cartão nenhum. Então tem que comprá-lo, depois guarda-o e sempre que precisar é só carregar. E lá vim com o cartão carregada para a ida e volta, igual àquele que em Julho deitara fora. Saio no Campo Grande e quando passo o cartão para sair, diz-me cartão inválido. Do outro lado da porta estava um segurança, começo a chamá-lo mas ele não me ouvia. Atrás de mim estava uma senhora que passa o cartão, as portas abrem-se e eu passo… as portas fecham-se e a senhora começa a chamar pelo segurança dizendo que eu tinha passado com o cartão dela. Explico ao segurança que o meu cartão dava inválido, mostro-lhe o comprovativo, encaminha-me à bilheteira indo depois abrir a porta à tal senhora. Na bilheteira confirmam que o meu cartão estava válido mas que às vezes o sistema falha. E pronto, lá saio à procura do autocarro 73. Ninguém me sabia dizer onde era a paragem do 73, até que resolvo perguntar pelo autocarro que vai para o Feira Nova do Lumiar, afinal era o 78 e indicaram-me a paragem.
Depois da consulta, volto de autocarro para o Campo Grande. Sabia que tinha que apanhar a linha verde no sentido do Cais do Sodré, portanto ponho-me a olhar atentamente para as indicações até que vejo na parte superior de 2 escadas rolantes uma seta para a esquerda a indicar linha amarela - Rato e outra seta para a direita a indicar linha verde – Cais do Sodré e ponho-me a subir a escada que afinal era a que descia… foi a atrapalhação total. Assim que me vi em casa pensei se volto a usar os transportes públicos.
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Acabou o Verão
As filas de trânsito e as buzinadelas regressaram à cidade. Acabou-se a sensação de todos os dias serem fim de semana. Já ninguém está de férias, já choveu e o telefone voltou a tocar ao mesmo ritmo (mas, pela primeira vez no ano estacionei o carro à primeira e sem dar voltas ao quarteirão).
sexta-feira, 1 de agosto de 2008
Verdes Anos
Às vezes há tempos tramados. Tempos de alguma inconsciência – como aquela rapariga que achou que poderia aceitar qualquer coisa para continuar a pagar a renda de casa. Tempos em que não sabia que não se procurava emprego no jornal diário mais vendido. Mas procurou. O anúncio parecia fácil: Ganhe uma pipa por mês. Ligou e disseram-lhe para ir lá na segunda-feira seguinte.
Foi. Era para vender enciclopédias, num regime estranho que nem ela percebeu bem o que era.
Ela achava que não havia problema e não tinha vergonha.
Quem dava o curso era um vendedor de enciclopédias, daqueles que convencia qualquer um a vender a mãe. Tudo parecia fácil.
E foi quando ela decidiu tentar a sua primeira venda. Mas afinal gozaram.
E ela ganhou vergonha na cara, desistiu e quis esquecer aquela semana e aquelas pessoas. Aquele ridículo todo.
Um ano depois o homem que dava o curso encontrou-a no cinema e foi cumprimentá-la, feliz até, por vê-la! A rapariga virou a cara e fingiu não se aperceber de nada.
Ela respondeu, secamente: “Deve estar a confundir-me com alguém. Eu não o conheço”.
No dia seguinte ela percebeu que estava a crescer. A vida deixava de ter a aparência dos dezoito anos. As ilusões desvaneciam-se.
Foi. Era para vender enciclopédias, num regime estranho que nem ela percebeu bem o que era.
Ela achava que não havia problema e não tinha vergonha.
Quem dava o curso era um vendedor de enciclopédias, daqueles que convencia qualquer um a vender a mãe. Tudo parecia fácil.
E foi quando ela decidiu tentar a sua primeira venda. Mas afinal gozaram.
E ela ganhou vergonha na cara, desistiu e quis esquecer aquela semana e aquelas pessoas. Aquele ridículo todo.
Um ano depois o homem que dava o curso encontrou-a no cinema e foi cumprimentá-la, feliz até, por vê-la! A rapariga virou a cara e fingiu não se aperceber de nada.
Ela respondeu, secamente: “Deve estar a confundir-me com alguém. Eu não o conheço”.
No dia seguinte ela percebeu que estava a crescer. A vida deixava de ter a aparência dos dezoito anos. As ilusões desvaneciam-se.
terça-feira, 1 de julho de 2008
História de Amor
Um menino e uma menina, com uns 5 ou 6 anos, passeiam no pátio da escolinha quando a menina tropeça numa pedra e magoa-se no cotovelo. Os meninos à volta deles começam a rir. Mas para o menino é como se nada mais existisse. O cotovelo da menina está ferido e ela chora de dor.
Ele segura nela e leva-a à professora que a trata com um penso rápido com dinossauros.
Voltam ao pátio, já a rir, felizes e de mão dada. As lágrimas, essas, o menino limpa-as da cara da sua querida com a manga do bibe.
sexta-feira, 20 de junho de 2008
Inconstância de Ser
7
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá Carneiro
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá Carneiro
Semana em stress
Cansa-me a intolerância e a prepotência de almas infelizes e insatisfeitas com a sua vida e que, por isso, procuram também massacrar a minha. Ou, como diz Álvaro de Campos...
O que há em mim é sobretudo cansaço
O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...
Álvaro de Campos
O que há em mim é sobretudo cansaço
O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...
Álvaro de Campos
terça-feira, 3 de junho de 2008
Surdez
A rua estava cheia de gente, era noite de Santo António.
As luzes da cidade faziam ricochete nos edifícios e na lua cheia.
Os martelos batiam na cabeça dos transeuntes.
As luzes brilhavam nos vidros dos carros que passavam.
Pessoas gesticulavam furiosas, talvez pelo impedimento de passar na Avenida.
As luzes das casas denunciavam os mais resistentes às festas.
Namorados passavam e entreolhavam-se em tons de enamoramento.
As luzes falam-nos palavras que não podem ser ouvidas.
Dominó
Olhaste para mim enquanto te afastavas. Sorriste e tropeçaste no carteiro, distraído na entrega do correio. Levava cartas e encomendas que levam mais sorrisos aos destinatários. Tocou à campainha e uma velhota abriu a porta, sorridente e ansiosa pelo correio, mas só recebeu a conta da luz e, revoltada, decidiu ir à pastelaria afogar as mágoas num pastel de nata, apesar das insistentes advertências a respeito dos diabetes da médica de família, que aliás mantinha o problema da surdez. As consultas eram uma gritaria, porque raramente percebia à primeira as queixas dos pacientes, que decidiram juntar-se e fazer queixa contra a médica surda, que acabou por ser reformada à força e foi substituída no centro de saúde por uma jovem médica que tropeçou no carteiro na primeira vez que se apresentou ao serviço.
quarta-feira, 21 de maio de 2008
O Cidadão na Repartição
A Senhora da Repartição do Serviço quase que sussurrou e disse "se esperar mais uns dias, até ao final do mês, a dívida prescreve, porque é o que acontece cinco anos depois. Deixe estar tudo como está e volta cá no início do próximo mês para se certificar de que já não existem dívidas".
Naquele momento, o Cidadão sentiu que partilhava alguma coisa com a Senhora da Repartição. Ambos tinham um plano infalível para enganar o Serviço. Iam aguardar uns dias até que a dívida prescrevesse! A Senhora da Repartição do Serviço acenava a cabeça e esboçava um sorriso, em jeito intimista, para demonstrar que juntos conseguiriam enganar o Serviço.
O Cidadão devolveu o aceno e o sorriso intimista.
Saiu do Serviço e a vergonha caiu em si, embaraçando-o com o plano infalível para enganar o Serviço, que tinha sido esboçado pela Senhora da Repartição do Serviço. Mesmo embaraçado e envergonhado, o Cidadão continuou o seu caminho, o seu plano e aguardou o final do mês e a prescrição da dívida.
Naquele momento, o Cidadão sentiu que partilhava alguma coisa com a Senhora da Repartição. Ambos tinham um plano infalível para enganar o Serviço. Iam aguardar uns dias até que a dívida prescrevesse! A Senhora da Repartição do Serviço acenava a cabeça e esboçava um sorriso, em jeito intimista, para demonstrar que juntos conseguiriam enganar o Serviço.
O Cidadão devolveu o aceno e o sorriso intimista.
Saiu do Serviço e a vergonha caiu em si, embaraçando-o com o plano infalível para enganar o Serviço, que tinha sido esboçado pela Senhora da Repartição do Serviço. Mesmo embaraçado e envergonhado, o Cidadão continuou o seu caminho, o seu plano e aguardou o final do mês e a prescrição da dívida.
segunda-feira, 19 de maio de 2008
Locus horrendus
A neura é um estado profundamente enervante. Semelhante ao que se sente quando se bebem, de seguida, quatro ou cinco cafés.
Estava um dia lindo quando acordei e de repente ficou um dia pavoroso.
De repente, passou-me a boa disposição e já gritei com alguém que não tinha culpa nenhuma.
Estava um dia lindo quando acordei e de repente ficou um dia pavoroso.
De repente, passou-me a boa disposição e já gritei com alguém que não tinha culpa nenhuma.
terça-feira, 13 de maio de 2008
Prá menina e pró menino
Ostentava orgulhosamente o seu relógio da Barbie para um menino com talvez três anos, menos um que ela.
"Amanhã também vais ter um", assegurava-lhe, pensando em amanhã como um futuro não muito longínquo. "Mas só que o teu vai ser do Homem-Aranha".
"Amanhã também vais ter um", assegurava-lhe, pensando em amanhã como um futuro não muito longínquo. "Mas só que o teu vai ser do Homem-Aranha".
quinta-feira, 8 de maio de 2008
Hábitos
O hábito veste-nos de manias que pintam o quotidiano. E quando as cores mudam ou as horas nos fazem mudar o hábito, fica tudo trocado. Inevitavelmente, sai asneira. E deixamos as chaves nos sítios mais insuspeitos, os óculos nos locais mais inóspitos...
sexta-feira, 2 de maio de 2008
Cartas - Preâmbulo [Ele]
2 de Maio de 1912
Celeste. Celeste. Celeste. Celestial. Esta semana cruzei-me algumas vezes com ela. Continua a ter o ar indiferente de sempre. Aérea, talvez não me veja ou nem se aperceba da minha existência. Vi-a a tomar chá com a mãe. Pegava na chávena distraidamente e queimou-se. Depois ficou muito tempo com a chávena na mão a olhar para o chá. Vi-a também a entrar em casa. Se estiver na janela da sala consigo ver a porta da casa dela. E vi-a no jardim, a ler. E viu-me, olhou para mim. Tive dúvidas que fosse para mim que estivesse a olhar, mas era mesmo. Sorri-lhe, mas talvez não o devesse ter feito. Parece-me que a envergonhei. E não a vejo há uns dias.
Celeste. Celeste. Celeste. Celestial. Esta semana cruzei-me algumas vezes com ela. Continua a ter o ar indiferente de sempre. Aérea, talvez não me veja ou nem se aperceba da minha existência. Vi-a a tomar chá com a mãe. Pegava na chávena distraidamente e queimou-se. Depois ficou muito tempo com a chávena na mão a olhar para o chá. Vi-a também a entrar em casa. Se estiver na janela da sala consigo ver a porta da casa dela. E vi-a no jardim, a ler. E viu-me, olhou para mim. Tive dúvidas que fosse para mim que estivesse a olhar, mas era mesmo. Sorri-lhe, mas talvez não o devesse ter feito. Parece-me que a envergonhei. E não a vejo há uns dias.
segunda-feira, 28 de abril de 2008
Cartas - Preâmbulo [Ela]
28 de Abril de 1912
Lembro-me perfeitamente de me ter apaixonado. Sei exactamente em que momento foi. Ele passava pelo jardim, acompanhado de dois amigos. Eu estava sentada a ler, com as minhas irmãs Alda e Teresa, num banco à sombra. Tinha um porte confiante, que me agradou. Andava e falava, com os passos ao sabor das palavras e da entoação que lhes dava. Sentiu-se observado e olhou para mim. Foi este o momento em que me perdi de amores. Senti borboletas na barriga e senti que mudava de cor. Toda eu devia ser uma palete dos mais criativo dos pintores.
Sorriu frontalmente para mim e eu desviei o olhar e voltei ao meu livro. Sentia-me envergonhada por ter sido apanhada de modo tão impróprio e estava irritada com ele, por ter sorrido daquele modo que me denunciou perante os amigos. Irritada por não poder olhar livremente.
O resto do dia passei entre o perdida e o irritada.
No dia seguinte disse às minhas irmãs que não as acompanhava ao jardim por estar com dor de cabeça. Estava furiosa com ele.
Alfredo, era o nome dele.
Lembro-me perfeitamente de me ter apaixonado. Sei exactamente em que momento foi. Ele passava pelo jardim, acompanhado de dois amigos. Eu estava sentada a ler, com as minhas irmãs Alda e Teresa, num banco à sombra. Tinha um porte confiante, que me agradou. Andava e falava, com os passos ao sabor das palavras e da entoação que lhes dava. Sentiu-se observado e olhou para mim. Foi este o momento em que me perdi de amores. Senti borboletas na barriga e senti que mudava de cor. Toda eu devia ser uma palete dos mais criativo dos pintores.
Sorriu frontalmente para mim e eu desviei o olhar e voltei ao meu livro. Sentia-me envergonhada por ter sido apanhada de modo tão impróprio e estava irritada com ele, por ter sorrido daquele modo que me denunciou perante os amigos. Irritada por não poder olhar livremente.
O resto do dia passei entre o perdida e o irritada.
No dia seguinte disse às minhas irmãs que não as acompanhava ao jardim por estar com dor de cabeça. Estava furiosa com ele.
Alfredo, era o nome dele.
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Netos e Avós
Os netos, uma menina de quatro anos e um menino de seis, estavam de férias com os avós. Certo dia, receberam um postal dos pais, que estavam de férias algures. A menina, no auge dos seus quatro anos, olha para o postal, estende-o para a avó e diz:
- Avó, importas-te de ler o postal? É que não trouxe os meus óculos!
Alguns dias depois, ainda os netos estão de férias com os avós, a avó está a estender a roupa. O menino começa a observar atentamente a tarefa da avó, com aquela profusa mistura de cores e de molas.
- O que estás a fazer, avó? Estás a enfeitar a corda?
- Avó, importas-te de ler o postal? É que não trouxe os meus óculos!
Alguns dias depois, ainda os netos estão de férias com os avós, a avó está a estender a roupa. O menino começa a observar atentamente a tarefa da avó, com aquela profusa mistura de cores e de molas.
- O que estás a fazer, avó? Estás a enfeitar a corda?
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Ir para a escola
"Deixa-me olhar bem para ti." Esfregou uma manchinha invisível na testa do rapaz, segurando a cara toda com uma mão. "Hmm, agora já estás bem. Dá-me um beijo e podes ir." O rapaz, contrafeito, refilou que não queria nada dar-lhe um beijo. Já ontem lhe tinha dado um beijo e não queria mais e, além disso, estavam ali os outros meninos.
PS - Tinha uma foto para inserir. Mas em cada 10 tentativas de inserir foto, há 7 que falham!
PS - Tinha uma foto para inserir. Mas em cada 10 tentativas de inserir foto, há 7 que falham!
quarta-feira, 9 de abril de 2008
O Reencontro
A lágrima caía pelo seu rosto, sem que ele tivesse autorizado o atrevimento. A sensação percorreu o seu corpo, manifestando tristeza e alegria. Tristeza pela perda, alegria pelo reencontro.
Outra lágrima decide cair pelo outro olho, com a ebulição de sensações.
No fim, era uma sensação de limpeza, frescura - como se saísse de um duche de água fresca.
terça-feira, 8 de abril de 2008
A Rainha
Conversa numa fila parada numa estrada nacional perto do Pinhal de Leiria:
Pessoa 1 - O D. Dinis foi um visionário quando mandou plantar este pinhal.
Pessoa 2 - O D. Dinis era casado com a D. Isabel, não era?
Pessoa 1 - Sim, era.
(silêncio)
Pessoa 2 - Essa D. Isabel era a rainha das Camélias, não era?
Pessoa 1 - Não, essa é a Dama das Camélias, do Alexandre Dumas. A D. Isabel é a Rainha Santa, por causa do milagre das rosas.
Pessoa 2 - Ah, pois claro! Estava a fazer confusão.
(silêncio ainda maior)
Pessoa 2 - Então é por causa dela que há as rosas de Santa Teresinha??
Pessoa 1 - O D. Dinis foi um visionário quando mandou plantar este pinhal.
Pessoa 2 - O D. Dinis era casado com a D. Isabel, não era?
Pessoa 1 - Sim, era.
(silêncio)
Pessoa 2 - Essa D. Isabel era a rainha das Camélias, não era?
Pessoa 1 - Não, essa é a Dama das Camélias, do Alexandre Dumas. A D. Isabel é a Rainha Santa, por causa do milagre das rosas.
Pessoa 2 - Ah, pois claro! Estava a fazer confusão.
(silêncio ainda maior)
Pessoa 2 - Então é por causa dela que há as rosas de Santa Teresinha??
quinta-feira, 3 de abril de 2008
O Exacto Azul
Segurou na agulha e num pedaço de linha azul para coser um botão amarelo ao bolsinho da camisa verde. Toda a camisa era cosida com linha azul. Daquele exacto azul. Para descobrir aquele exacto azul percorreu todas as retrosarias da Rua da Conceição. Todas. Começou numa ponta e acabou na outra. Na outra ponta, justamente naquela última loja. Antes de entrar, faltavam ainda duas ou três lojas para terminar o périplo, estivera prestes a desistir. Sempre a mesma coisa, entrava na loja, cumprimentava as pessoas, tirava a camisa verde do saquinho guardado dentro da mala e perguntava se tinha aquele exacto azul. Não. Não. Não e não, respondiam, invariavelmente, depois de percorrer os mostruários repletos de carrinhos de linha de todas as cores. Todas as cores, menos aquele exacto azul. Até que, enfim desiludida e sem réstia de esperança, entra na loja depois de descansar um pouco, encostada a uma parede que apanhava sol. Fechou os olhos e deixou o sol aquecer o seu rosto já sem esperança de encontrar o exacto azul.
E no fundo de uma gaveta esquecida a senhora da loja finalmente encontra os dois últimos carrinhos de linhas do exacto azul.
Vai para casa, com a camisa verde dentro do saquinho guardado na mala e o carrinho de linha do exacto azul e prepara tudo, como se fosse um ritual a cumprir. A agulha com a linha, o silêncio na casa, para que pudesse estar concentrada, e a tarefa finalmente tem início.
Não era uma grande especialista a coser botões. Picou-se duas vezes e fez um pequeno nó que teve de ser aldrabado.
Mas, no final, nem se notava que tinha sido ela a coser o botão. A camisa verde com botões amarelos e linha azul daquele exacto azul estava como nova.
segunda-feira, 31 de março de 2008
Na tropa (episódio verídico)
Cabo 1 - Então Manel, tudo fino?
Cabo 2 - Tudo. Passei o fim de semana na terra. E voltei há bocado
Cabo 1 - Isso é que é vida!
Cabo 2 - Olha lá, António, tou aqui com uma dúvida.
Cabo 1 - Conta...
Cabo 2 - Quando se utiliza a expressão "dei um tiro no escuro", significa que se deu um tiro num preto??
Cabo 1 - (...)
Cabo 2 - Tudo. Passei o fim de semana na terra. E voltei há bocado
Cabo 1 - Isso é que é vida!
Cabo 2 - Olha lá, António, tou aqui com uma dúvida.
Cabo 1 - Conta...
Cabo 2 - Quando se utiliza a expressão "dei um tiro no escuro", significa que se deu um tiro num preto??
Cabo 1 - (...)
sexta-feira, 28 de março de 2008
Os pensamentos dos outros
Frases e pensamentos para partilhar:
Sábio é o que está cheio de rectidão,
mas nem por isso ataca e
transforma os outros... É direito e contudo
não se dedica a endireitar os outros.
Lao Tse
(...) De certa maneira, apreendi em traços largos aquela piada cósmica - bastava pensar na imensidade, complexidade e antiguidade da China e na trivialidade da actual política do poder, entregue às mãos de cow-boys americanos ou de magnatas protestantes com a alma em Las Vegas... Sim, valia a pena rir. O riso dele era tão contagioso, que me vi obrigado a segui-lo, e juntos dobrávamo-nos em dois, até nos doerem as costelas e eu lhe implorar que parasse.
Lawrence Durrell, in Um sorriso nos olhos da alma
Sábio é o que está cheio de rectidão,
mas nem por isso ataca e
transforma os outros... É direito e contudo
não se dedica a endireitar os outros.
Lao Tse
(...) De certa maneira, apreendi em traços largos aquela piada cósmica - bastava pensar na imensidade, complexidade e antiguidade da China e na trivialidade da actual política do poder, entregue às mãos de cow-boys americanos ou de magnatas protestantes com a alma em Las Vegas... Sim, valia a pena rir. O riso dele era tão contagioso, que me vi obrigado a segui-lo, e juntos dobrávamo-nos em dois, até nos doerem as costelas e eu lhe implorar que parasse.
Lawrence Durrell, in Um sorriso nos olhos da alma
quinta-feira, 27 de março de 2008
No cinema
Fila 2, cadeiras 6 e 7
A pirralha de quatro anos olhou para a mãe e disse:
- Dá-me a mão.
Continuaram a ver o filme, naquele jeito de-mão-dada-como-se-não-nos-víssemos-há-semanas.
Fila 12, cadeiras 11 e 12
O rapaz beijou a namorada e pôs o braço nos seus ombros, em jeito de truque-que-aprendeu-no-cinema.
Ela olhou de lado para a mão dele e sorriu sem que ele visse. Também conhecia o truque.
A pirralha de quatro anos olhou para a mãe e disse:
- Dá-me a mão.
Continuaram a ver o filme, naquele jeito de-mão-dada-como-se-não-nos-víssemos-há-semanas.
Fila 12, cadeiras 11 e 12
O rapaz beijou a namorada e pôs o braço nos seus ombros, em jeito de truque-que-aprendeu-no-cinema.
Ela olhou de lado para a mão dele e sorriu sem que ele visse. Também conhecia o truque.
quarta-feira, 26 de março de 2008
Conversa de Surdos ao telefone
Pessoa 1 - Sabes lá... Espalhei-me de bicicleta e fiz uma luxação no dedo polegar...
Pessoa 2 - A sério? Que chato, e está muito inchado?
Pessoa 1 - Um bocado, dói-me muito. Hoje vou ao cinema.
Pessoa 2 - Mas consegues andar?
Pessoa 1 - Sim, consigo, claro.
Pessoa 2 - Mas vais de chinelos, é?
Pessoa 1 - Mas... magoei-me no polegar.
Pessoa 2 - Pois, deve custar-te muito a andar.
Pessoa 1 - (...)
Pessoa 2 - A sério? Que chato, e está muito inchado?
Pessoa 1 - Um bocado, dói-me muito. Hoje vou ao cinema.
Pessoa 2 - Mas consegues andar?
Pessoa 1 - Sim, consigo, claro.
Pessoa 2 - Mas vais de chinelos, é?
Pessoa 1 - Mas... magoei-me no polegar.
Pessoa 2 - Pois, deve custar-te muito a andar.
Pessoa 1 - (...)
Inspirações
Quando me contam o que está a acontecer fico perplexa. Quer dizer, sem reacção, sem saber o que pensar, o que dizer, o que fazer... Viro as costas, sem dizer uma palavra, e vou-me embora.
Entro no carro, ligo a ignição e não sei para onde ir... Continuo sem saber o que pensar, o que dizer, o que fazer... resolvo ir, mas não sei para onde. Apenas ir, andar, ver a estrada a passar por mim. E depois logo se vê onde vou parar. Apenas penso em ir para algum sítio que me deixe pensar, sem nada a incomodar-me. Limpo a mente e vou. Deixo-me ir.
Dou por mim numa rua sem ninguém, com alguns carros estacionados. Não sei onde estou e preciso de ir para algum sítio que me deixe pensar no que hei-de pensar, no que hei-de dizer, no que hei-de fazer. Fico ali parada, naquela rua sem ninguém, com meia dúzia de carros arrumados a pensar em nada. Só a olhar à volta, com aquela sensação de vazio que sinto por não estar num sítio que apenas me deixe pensar em paz. E sinto um formigueiro na cabeça, um desespero que sentimos quando precisamos que alguma coisa aconteça mas que, por qualquer razão, não acontece.
E vou andando, com alguma atenção, à procura de um sítio que me deixe em paz.
Dentro da minha carteira oiço o telefone a tocar. É ele, de certeza, mas não quero ouvir. Ainda não quero ouvir. Antes disso só preciso de me organizar um bocadinho.
Encontro a praia. É curioso que tantas pessoas precisem de ir à praia quando querem pensar, quando querem estar em paz, quando precisam de se encontrar. Não percebo porque será... Talvez seja por causa da sensação de ausência de limites. Como se nos sentíssemos a partir por esse mar fora, para nos olharmos como se não estivéssemos em nós. É como se fosse outra pessoa a contar-nos o que é melhor, porque tem o conselho de um azul, por vezes verde, outras vezes mais cinzento... É engraçada esta fixação pelo “olhar o mar”. Porque ele, de facto, nada nos diz... Mas ouve-nos... de alguma forma, seja qual for, ouve-nos. Ou faz-nos pensar isso.
Saio do carro e sento-me numa rocha. Lembro-me de vir aqui desde sempre. As recordações esboçam um sorriso em mim. O medo das algas! Pensava que por baixo das algas havia bichos que me podiam comer o pé... E o horror de nadar por cima das rochas, porque achava que ia aparecer um monstro qualquer do mar para me comer... Os lanchinhos da praia... o sal na minha pele... gritar para a minha mãe me ver quando fazia o pino...
E agora estou aqui outra vez. A pedir satisfações da minha própria vida. Acontece-me isto e nunca pensei que pudesse acontecer, depois de tanto tempo à espera...
Penso em mim. No meu corpo. Tenho vestidas umas calças pretas e uma camisa azul. Mas apetece-me branco. Apetece-me azul claro. E apetece-me amarelo e também verde água. E cor de rosa... apetecem-me cores clarinhas. Apetece-me sentir cheirinhos de alfazema...
Levanto-me e decido andar pela praia. Vou para a beira mar e começo a sentir os grãos de areia a entrar nos pés. Não gosto nada de ter areia nos sapatos e descalço-me. Enterro os pés na areia e lembro-me da minha avó, que fazia o mesmo porque faz bem aos ossos. E também ia à pesca para descansar a cabeça. E ensinou-me as primeiras letras. E lembro-me do primeiro postal que recebi. Da minha mãe, que tinha ido de férias com o meu pai. E era um postal com cinco linhas, que ainda hoje tenho guardado numa lata velha de chocolates. E demorei quase uma hora a ler esse postal. Lembro-me tão bem. Estava cheia de medo, porque o meu avô estava com os óculos, sentado ao meu lado. Ele estava com um ar muito sério, a apontar o dedo para o postal. E eu estava de pé, com as mãos atrás das costas a tentar decifrar as cinco linhas do postal da minha mãe, que contava que eles tinham encontrado uns gatinhos e todos os dias lhes davam leite. E foi um dos momentos mais mágicos da minha vida, quando percebi que as letras traziam palavras cheias de amor e traziam um bocadinho dos meus pais, que estavam de férias sem nós.
Olho à minha volta e reparo que a praia tem pouca gente. Ainda não há muitas pessoas de férias...
E volto a pensar no que me está a acontecer. E parece que, finalmente se faz luz na minha cabeça. E toco na minha barriga, para receber o ser que vai crescer dentro de mim. E tudo o que quero é dizer-lhe para vir depressa, porque quero tanto conhecê-lo. E tenho tantas saudades, sem nunca antes o ter visto.
Há tanto tempo que queria que isto acontecesse, mas nunca tinha pensado em como era mesmo. É uma vidinha linda aqui dentro. Assim muito pequenininha a precisar de mim. E, de repente, sinto-me mais forte que nunca, com força para aguentar tudo na vida porque tenho uma responsabilidade enorme. Enorme! Tão grande que nem tem nome! Porque é gigante e dá-me uma força incrível. Sinto-me uma super-mulher! Já tenho, dentro de mim, um filho que precisa que eu o proteja...
E estou tão feliz! Agora toda aquela sensação de estar perdida desapareceu. E apenas penso no que estou ali a fazer. Tenho que lhe contar. O meu marido tem que saber! Mas não quero dizer por telefone.
Entro no carro, ligo a ignição e não sei para onde ir... Continuo sem saber o que pensar, o que dizer, o que fazer... resolvo ir, mas não sei para onde. Apenas ir, andar, ver a estrada a passar por mim. E depois logo se vê onde vou parar. Apenas penso em ir para algum sítio que me deixe pensar, sem nada a incomodar-me. Limpo a mente e vou. Deixo-me ir.
Dou por mim numa rua sem ninguém, com alguns carros estacionados. Não sei onde estou e preciso de ir para algum sítio que me deixe pensar no que hei-de pensar, no que hei-de dizer, no que hei-de fazer. Fico ali parada, naquela rua sem ninguém, com meia dúzia de carros arrumados a pensar em nada. Só a olhar à volta, com aquela sensação de vazio que sinto por não estar num sítio que apenas me deixe pensar em paz. E sinto um formigueiro na cabeça, um desespero que sentimos quando precisamos que alguma coisa aconteça mas que, por qualquer razão, não acontece.
E vou andando, com alguma atenção, à procura de um sítio que me deixe em paz.
Dentro da minha carteira oiço o telefone a tocar. É ele, de certeza, mas não quero ouvir. Ainda não quero ouvir. Antes disso só preciso de me organizar um bocadinho.
Encontro a praia. É curioso que tantas pessoas precisem de ir à praia quando querem pensar, quando querem estar em paz, quando precisam de se encontrar. Não percebo porque será... Talvez seja por causa da sensação de ausência de limites. Como se nos sentíssemos a partir por esse mar fora, para nos olharmos como se não estivéssemos em nós. É como se fosse outra pessoa a contar-nos o que é melhor, porque tem o conselho de um azul, por vezes verde, outras vezes mais cinzento... É engraçada esta fixação pelo “olhar o mar”. Porque ele, de facto, nada nos diz... Mas ouve-nos... de alguma forma, seja qual for, ouve-nos. Ou faz-nos pensar isso.
Saio do carro e sento-me numa rocha. Lembro-me de vir aqui desde sempre. As recordações esboçam um sorriso em mim. O medo das algas! Pensava que por baixo das algas havia bichos que me podiam comer o pé... E o horror de nadar por cima das rochas, porque achava que ia aparecer um monstro qualquer do mar para me comer... Os lanchinhos da praia... o sal na minha pele... gritar para a minha mãe me ver quando fazia o pino...
E agora estou aqui outra vez. A pedir satisfações da minha própria vida. Acontece-me isto e nunca pensei que pudesse acontecer, depois de tanto tempo à espera...
Penso em mim. No meu corpo. Tenho vestidas umas calças pretas e uma camisa azul. Mas apetece-me branco. Apetece-me azul claro. E apetece-me amarelo e também verde água. E cor de rosa... apetecem-me cores clarinhas. Apetece-me sentir cheirinhos de alfazema...
Levanto-me e decido andar pela praia. Vou para a beira mar e começo a sentir os grãos de areia a entrar nos pés. Não gosto nada de ter areia nos sapatos e descalço-me. Enterro os pés na areia e lembro-me da minha avó, que fazia o mesmo porque faz bem aos ossos. E também ia à pesca para descansar a cabeça. E ensinou-me as primeiras letras. E lembro-me do primeiro postal que recebi. Da minha mãe, que tinha ido de férias com o meu pai. E era um postal com cinco linhas, que ainda hoje tenho guardado numa lata velha de chocolates. E demorei quase uma hora a ler esse postal. Lembro-me tão bem. Estava cheia de medo, porque o meu avô estava com os óculos, sentado ao meu lado. Ele estava com um ar muito sério, a apontar o dedo para o postal. E eu estava de pé, com as mãos atrás das costas a tentar decifrar as cinco linhas do postal da minha mãe, que contava que eles tinham encontrado uns gatinhos e todos os dias lhes davam leite. E foi um dos momentos mais mágicos da minha vida, quando percebi que as letras traziam palavras cheias de amor e traziam um bocadinho dos meus pais, que estavam de férias sem nós.
Olho à minha volta e reparo que a praia tem pouca gente. Ainda não há muitas pessoas de férias...
E volto a pensar no que me está a acontecer. E parece que, finalmente se faz luz na minha cabeça. E toco na minha barriga, para receber o ser que vai crescer dentro de mim. E tudo o que quero é dizer-lhe para vir depressa, porque quero tanto conhecê-lo. E tenho tantas saudades, sem nunca antes o ter visto.
Há tanto tempo que queria que isto acontecesse, mas nunca tinha pensado em como era mesmo. É uma vidinha linda aqui dentro. Assim muito pequenininha a precisar de mim. E, de repente, sinto-me mais forte que nunca, com força para aguentar tudo na vida porque tenho uma responsabilidade enorme. Enorme! Tão grande que nem tem nome! Porque é gigante e dá-me uma força incrível. Sinto-me uma super-mulher! Já tenho, dentro de mim, um filho que precisa que eu o proteja...
E estou tão feliz! Agora toda aquela sensação de estar perdida desapareceu. E apenas penso no que estou ali a fazer. Tenho que lhe contar. O meu marido tem que saber! Mas não quero dizer por telefone.
quarta-feira, 19 de março de 2008
segunda-feira, 17 de março de 2008
Relógio
Acordou às cinco da manhã todo transpirado, do calor desta estação que não sabe muito bem quem é. Tanto é frio como calor, como chuva! No meio da confusão de ter acordado pensava que tinha que haver outra razão. Talvez um sonho, um pesadelo... E um rodopio de pensamentos, de acontecimentos (mas aconteceram ou foram sonhados?) surge na sua mente. Ele continuava confuso, sem perceber muito bem porque não conseguia voltar a adormecer. Começa a adormecer e encontra sempre alguém no meio dos sonhos que faz com que volte a despertar... Até que toca o despertador.
Nem quer acreditar que o despertador tocou e ele dormiu a correr.
terça-feira, 11 de março de 2008
Sr. Arroz
O Sr. Arroz acordou com vontade de passear.
Escanhoou-se cuidadosamente, passou o after-shave pelo rosto fresco e deu umas palmadinhas para terminar.
Orgulhava-se de escanhoar-se em quatro minutos. Há anos que tinha o mesmo ritual. Misturava o creme de barbear na sua tacinha, mexia o preparado com o velho pincel de barba. Pintava a cara com o pincel, ate ficar uma grossa camada de creme. Passava a lâmina por água fria e tirava todo o creme.
De segunda a sábado, o ritual cumpria-se escrupulosamente. Só descansando ao domingo.
Num Natal, o Sr. Arroz recebeu uma máquina de barbear. Esteve que tempos até ter coragem de mudar o seu ritual. Não conseguia fazer a barba sem o seu creme de barbear. Mas a máquina dispensava o creme...
Passaram-se semanas, meses, outro Natal, até que a Sra. Arroz o confrontou. Ele tinha que experimentar.
O Sr. Arroz passou uma semana inteira a mentalizar-se. A máquina ficou todo esse tempo na casa de banho, como que a ver como era o ritual, feita fantasma a aterrorizar as suas manhãs outrora calmas e sem percalços e novidades.
No dia definido, o Sr. Arroz prepara-se com todo o cuidado para a grande experiência. Tinha lido e relido as instruções, estava preparado. Liga a máquina e dirige-a ao seu rosto. Fica uns segundos naquele impasse. Até que decide.
Satisfeito com a sua decisão, o Sr. Arroz guarda cuidadosamente o seu velho pincel.
Mais tarde, dirige-se à drogaria.
Compra um novo pincel, com cabo de madeira envernizada e pêlo sedoso para a sua pele. O sorriso está estampado no seu rosto.
segunda-feira, 10 de março de 2008
Portas de Dublin III
terça-feira, 4 de março de 2008
Vícios Urbanos I
Pisava folhas secas para se entreter. Andava calmamente pelas ruas, pelos trilhos das folhas secas, a ouvir a música das folhas que se desfaziam. Por vezes, um montinho desiludia sem se fazer ouvir. Folhas húmidas, que ainda não tinham tido tempo de secar.
O anoitecer chega, libertando da tarefa de pisar as folhas secas da cidade.
segunda-feira, 3 de março de 2008
Espectadora de emoções
Horas e horas de espera todas as semanas nas chegadas do aeroporto fizeram de mim uma espectadora atenta de emoções alheias.
Voos, muitas vezes escalados, de países de leste, África, Brasil, Europa e por esse mundo fora, trazem familiares separados há muito. O reencontro é cheio de riso, lágrimas e abraços urgentes de quem há tanto não se via.
Sentada numa das cadeiras, olho atenta para tantas emoções. Muitas vezes tive que apertar as mãos para que as lágrimas não caíssem. Mas os olhos, esses, ficavam marejados. Ramos de flores às mulheres que abandonam o seu país para ficarem junto dos maridos. Famílias reencontradas em natais, páscoas e verões.
E, claro, as emoções dos filhos pequenos cujos pais estiveram fora uma semana. E a alegria do reencontro é como se tempos e tempos tivessem passado!
Em qualquer aeroporto, em qualquer cidade, há à espera o espectáculo das emoções que não nos pertencem.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008
Escrever
Perdi a prática de escrever.
Quando se perde a prática de escrever, as palavras custam a sair das mãos, quando antes brotavam imparáveis, alegres e decididas.
As palavras agora gaguejam na ponta dos dedos, com uma sensação presa no estômago. Olho pela janela em busca de uma frase à minha procura, mas teimo em levar o olhar a um prédio destruído que seca o pensamento. E então olho para a árvore em frente ao prédio destruído.
E sinto algo a regressar... Palavras que se aproximam timidamente de mim.
Como se estivéssemos num período de enamoramento, em que nos conhecemos.
Uma nova perspectiva
sábado, 23 de fevereiro de 2008
Dia 1
Manhã do dia 1
As pessoas atropelam-se, pisam-se, remoem e não olham para atrás. Ignoram-se, empurram-se e fingem que não foi nada.
A certa altura, a indiferença toma conta da vida, e tudo passa sem causar danos, como se os atropelos da vida fossem leves ventinhos a passar na cara.
Olho para trás e vejo uma mulher. Tem o mesmo olhar indiferente, catatónico e sem sentido. Por ela passaram outros rostos. Felizes, infelizes, diferentes, indiferentes. O tempo passa sem passar, nada muda. Continuamos agarrados às ervinhas que crescem à nossa volta, e não largamos as ervinhas e as florzinhas, temos medo que elas deixem de estar ali, que mudem, que cresçam, que desapareçam, que se alastrem!
Fixo o olhar na empregada de um café. Coxa, de algum desses países de leste. Sorri, ao entregar o pedido a um cliente, como se de uma tarefa fatal se tratasse. Mas não leva troco. E sorri e coxeia e serve outro café, volta a sorrir, vai buscar uma garrafa de água, sorri e alguém lhe sorri.
Viro a cabeça. Não suporto olhar toda aquela felicidade indiferente, diferente, irreverente e deslocada.
Tenho vontade de sair daquela estação de comboio cheia de gente, a correr, fugir e gritar... e violar a minha própria indiferença. Atrever-me à diferença, à inadaptação, à tolerância. Contenho-me. Chega o comboio. Atropelões, tropeções, pisadelas sem olhar. Corro para roubar o lugar a alguém que se ia sentar. Sento-me e olho para a janela, com o meu olhar indiferente.
Saio na minha estação, no meio de atropelões, tropeções, pisadelas. Páro à saída do edifício, como se tivesse um bloqueio que impedisse os meus pés de se moverem. E o meu mundo pára. Mas o deles continua. E vejo tudo, como se subisse e voasse, no largo à minha frente. Oiço as buzinas, as portas a fechar, a abrir, os canários nas varandas os taxistas a discutir. O empregado do café a fazer barulho a arrumar as chávenas e os pratos. E continuo sem me mover. Oiço a mãe a despedir-se dos filhos, as crianças a rir, a mulher da mercearia a refilar, um casal a discutir, outro a fazer juras de amor.
Não suporto, não suporto, não tolero, sentir toda esta vida, todo o barulho, todo o sentimento.
Respiro fundo e tento conter a pequena lágrima que tenta sair dos meus olhos. E enfrento mais um dia...
Final do dia 1
Sinto o cansaço a tomar conta de mim. Tenho vontade de chegar a casa e criar raízes no sofá. Vou a pé, sem pensar, sem raciocinar...
As pessoas atropelam-se, pisam-se, remoem e não olham para atrás. Ignoram-se, empurram-se e fingem que não foi nada.
A certa altura, a indiferença toma conta da vida, e tudo passa sem causar danos, como se os atropelos da vida fossem leves ventinhos a passar na cara.
Olho para trás e vejo uma mulher. Tem o mesmo olhar indiferente, catatónico e sem sentido. Por ela passaram outros rostos. Felizes, infelizes, diferentes, indiferentes. O tempo passa sem passar, nada muda. Continuamos agarrados às ervinhas que crescem à nossa volta, e não largamos as ervinhas e as florzinhas, temos medo que elas deixem de estar ali, que mudem, que cresçam, que desapareçam, que se alastrem!
Fixo o olhar na empregada de um café. Coxa, de algum desses países de leste. Sorri, ao entregar o pedido a um cliente, como se de uma tarefa fatal se tratasse. Mas não leva troco. E sorri e coxeia e serve outro café, volta a sorrir, vai buscar uma garrafa de água, sorri e alguém lhe sorri.
Viro a cabeça. Não suporto olhar toda aquela felicidade indiferente, diferente, irreverente e deslocada.
Tenho vontade de sair daquela estação de comboio cheia de gente, a correr, fugir e gritar... e violar a minha própria indiferença. Atrever-me à diferença, à inadaptação, à tolerância. Contenho-me. Chega o comboio. Atropelões, tropeções, pisadelas sem olhar. Corro para roubar o lugar a alguém que se ia sentar. Sento-me e olho para a janela, com o meu olhar indiferente.
Saio na minha estação, no meio de atropelões, tropeções, pisadelas. Páro à saída do edifício, como se tivesse um bloqueio que impedisse os meus pés de se moverem. E o meu mundo pára. Mas o deles continua. E vejo tudo, como se subisse e voasse, no largo à minha frente. Oiço as buzinas, as portas a fechar, a abrir, os canários nas varandas os taxistas a discutir. O empregado do café a fazer barulho a arrumar as chávenas e os pratos. E continuo sem me mover. Oiço a mãe a despedir-se dos filhos, as crianças a rir, a mulher da mercearia a refilar, um casal a discutir, outro a fazer juras de amor.
Não suporto, não suporto, não tolero, sentir toda esta vida, todo o barulho, todo o sentimento.
Respiro fundo e tento conter a pequena lágrima que tenta sair dos meus olhos. E enfrento mais um dia...
Final do dia 1
Sinto o cansaço a tomar conta de mim. Tenho vontade de chegar a casa e criar raízes no sofá. Vou a pé, sem pensar, sem raciocinar...
Carta de Desamor - Lição
Querido Clyde,
O nosso último serviço não correu da melhor forma! As palavras até me falham...
Não foi só pelo facto de teres sido preso, mas acho que serviu de lição para o futuro. Agimos dando o serviço como garantido e não tomámos as devidas precauções. Como te digo, espero que tenha servido para aprendermos a planear melhor o nosso trabalho. Enfim...
Sabes, nem foi tanto por teres chegado 45 minutos atrasado, apesar de saberes perfeitamente que não suporto atrasos. Não compreendo! E depois aquela história de teres ficado retido no metro, porque está em obras, ou lá o que foi! Expliquei-te que não me dava jeito nenhum ir buscar-te a casa, como querias, porque fui ao cabeleireiro, que era só a um quarteirão do banco. Não fazia sentido nenhum atravessar a cidade inteira só para ir buscar-te a casa, não achas? Ainda perdemos alguns minutos a discutir por causa do teu atraso e entretanto já estávamos atrasados uma hora! Enfim...
Repara, nem foi tanto porque as máscaras que usamos sempre tinham ficado em casa. Aliás, pedi-te logo desculpa por me ter esquecido e resolvi muito bem o assunto com as meias de licra! Ficámos óptimos. Aliás, acho que de futuro é o que se vai usar, é muito mais simples e eficaz.
E o facto de ter faltado a luz quando eu estava no cofre a encher o saco de dinheiro também nem foi o pior. É claro que fiquei trancada durante horas no cofre e sem luz nenhuma, nem casa de banho, nem comida... Enfim...
O que me custa mesmo, no meio disto tudo é que conheci outra pessoa. É o Eric, lembras-te? Deves lembrar-te, era o gerente do banco. Deste-lhe uma cacetada e mandaste-o para o cofre. Passámos umas horas juntos e apaixonámo-nos... Decidimos fugir para a Europa com o dinheiro do assalto. Sabes, não me parecia bem continuar nos Estados Unidos, pois tu e eu temos tantas memórias por esse país fora. Senti necessidade de mudar de ares. E a Europa tem um potencial enorme para o nosso negócio. Além disso, o Eric fala muito bem francês. É ele que tem falado nos serviços, eu ensinei-lhe tudo sobre o nosso negócio. Somos um sucesso!
Espero que saias depressa! Nunca te esquecerei.
Beijo,
Bonnie
PS – Desculpa ter demorado tanto tempo a dizer alguma coisa. É que viémos para a Europa de barco.
O nosso último serviço não correu da melhor forma! As palavras até me falham...
Não foi só pelo facto de teres sido preso, mas acho que serviu de lição para o futuro. Agimos dando o serviço como garantido e não tomámos as devidas precauções. Como te digo, espero que tenha servido para aprendermos a planear melhor o nosso trabalho. Enfim...
Sabes, nem foi tanto por teres chegado 45 minutos atrasado, apesar de saberes perfeitamente que não suporto atrasos. Não compreendo! E depois aquela história de teres ficado retido no metro, porque está em obras, ou lá o que foi! Expliquei-te que não me dava jeito nenhum ir buscar-te a casa, como querias, porque fui ao cabeleireiro, que era só a um quarteirão do banco. Não fazia sentido nenhum atravessar a cidade inteira só para ir buscar-te a casa, não achas? Ainda perdemos alguns minutos a discutir por causa do teu atraso e entretanto já estávamos atrasados uma hora! Enfim...
Repara, nem foi tanto porque as máscaras que usamos sempre tinham ficado em casa. Aliás, pedi-te logo desculpa por me ter esquecido e resolvi muito bem o assunto com as meias de licra! Ficámos óptimos. Aliás, acho que de futuro é o que se vai usar, é muito mais simples e eficaz.
E o facto de ter faltado a luz quando eu estava no cofre a encher o saco de dinheiro também nem foi o pior. É claro que fiquei trancada durante horas no cofre e sem luz nenhuma, nem casa de banho, nem comida... Enfim...
O que me custa mesmo, no meio disto tudo é que conheci outra pessoa. É o Eric, lembras-te? Deves lembrar-te, era o gerente do banco. Deste-lhe uma cacetada e mandaste-o para o cofre. Passámos umas horas juntos e apaixonámo-nos... Decidimos fugir para a Europa com o dinheiro do assalto. Sabes, não me parecia bem continuar nos Estados Unidos, pois tu e eu temos tantas memórias por esse país fora. Senti necessidade de mudar de ares. E a Europa tem um potencial enorme para o nosso negócio. Além disso, o Eric fala muito bem francês. É ele que tem falado nos serviços, eu ensinei-lhe tudo sobre o nosso negócio. Somos um sucesso!
Espero que saias depressa! Nunca te esquecerei.
Beijo,
Bonnie
PS – Desculpa ter demorado tanto tempo a dizer alguma coisa. É que viémos para a Europa de barco.
O blog. A folha em branco.
És ainda folha em branco de um caderno acabado de sair da prateleira da papelaria. Uso a sensação de abrir um caderno em branco e sentir todo o espaço para me ouvir.
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