sábado, 23 de fevereiro de 2008

Dia 1

Manhã do dia 1

As pessoas atropelam-se, pisam-se, remoem e não olham para atrás. Ignoram-se, empurram-se e fingem que não foi nada.
A certa altura, a indiferença toma conta da vida, e tudo passa sem causar danos, como se os atropelos da vida fossem leves ventinhos a passar na cara.
Olho para trás e vejo uma mulher. Tem o mesmo olhar indiferente, catatónico e sem sentido. Por ela passaram outros rostos. Felizes, infelizes, diferentes, indiferentes. O tempo passa sem passar, nada muda. Continuamos agarrados às ervinhas que crescem à nossa volta, e não largamos as ervinhas e as florzinhas, temos medo que elas deixem de estar ali, que mudem, que cresçam, que desapareçam, que se alastrem!
Fixo o olhar na empregada de um café. Coxa, de algum desses países de leste. Sorri, ao entregar o pedido a um cliente, como se de uma tarefa fatal se tratasse. Mas não leva troco. E sorri e coxeia e serve outro café, volta a sorrir, vai buscar uma garrafa de água, sorri e alguém lhe sorri.
Viro a cabeça. Não suporto olhar toda aquela felicidade indiferente, diferente, irreverente e deslocada.
Tenho vontade de sair daquela estação de comboio cheia de gente, a correr, fugir e gritar... e violar a minha própria indiferença. Atrever-me à diferença, à inadaptação, à tolerância. Contenho-me. Chega o comboio. Atropelões, tropeções, pisadelas sem olhar. Corro para roubar o lugar a alguém que se ia sentar. Sento-me e olho para a janela, com o meu olhar indiferente.
Saio na minha estação, no meio de atropelões, tropeções, pisadelas. Páro à saída do edifício, como se tivesse um bloqueio que impedisse os meus pés de se moverem. E o meu mundo pára. Mas o deles continua. E vejo tudo, como se subisse e voasse, no largo à minha frente. Oiço as buzinas, as portas a fechar, a abrir, os canários nas varandas os taxistas a discutir. O empregado do café a fazer barulho a arrumar as chávenas e os pratos. E continuo sem me mover. Oiço a mãe a despedir-se dos filhos, as crianças a rir, a mulher da mercearia a refilar, um casal a discutir, outro a fazer juras de amor.
Não suporto, não suporto, não tolero, sentir toda esta vida, todo o barulho, todo o sentimento.
Respiro fundo e tento conter a pequena lágrima que tenta sair dos meus olhos. E enfrento mais um dia...

Final do dia 1

Sinto o cansaço a tomar conta de mim. Tenho vontade de chegar a casa e criar raízes no sofá. Vou a pé, sem pensar, sem raciocinar...

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